Se Jair Bolsonaro conversasse com os septuagenários veteranos da “tigrada” da ditadura, não teria chamado o general da reserva Luiz Rocha Paiva de “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro). Ele foi um dos principais colaboradores na manutenção do site “Terrorismo Nunca Mais”. Talvez também não tivesse sugerido que Fernando Santa Cruz, desaparecido desde 1974, quando tinha 26 anos, foi executado por militantes de esquerda. Fernando era o pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, que tinha menos de dois anos quando ele desapareceu.
O caso de Fernando Santa Cruz exemplifica, como poucos outros, o assassinato de uma pessoa que tinha vida legal, família constituída e domicílio conhecido. Ele morreu no último mês do governo Médici. A política de extermínio das organizações armadas brasileiras que agiam nas cidades já tinha esfriado, pois elas haviam sido esmigalhadas. Em novembro, um comando do DOI de São Paulo matou Sonia Maria Lopes de Morais, da Ação Libertadora Nacional, e Antônio Carlos Bicalho Lana, que se escondiam no litoral paulista. Em dezembro, o Centro de Informações do Exército sequestrou em Buenos Aires e matou no Rio o ex-major Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, que haviam militado na Vanguarda Popular Revolucionária. Depois disso, nada. (Do Natal de 1973 ao final de 1974, mataram cerca de 40 militantes do PC do B nas matas do Araguaia, inclusive os que se renderam. Ou, numa realidade paralela, foram todos resgatados por um disco voador albanês). Nesse período deu-se a decapitação da liderança do Partido Comunista, que não pegou em armas.
Fernando Santa Cruz havia sido preso no Recife em 1966, quando era menor de idade. Desde 1968 tinha vida legal. Trabalhou no Ministério do Interior e mudou-se para São Paulo, onde trabalhava no Departamento de Águas e Energia Elétrica. Durante o Carnaval de 1974, Fernando estava no Rio e marcou um encontro com o amigo Eduardo Collier, militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Temia ser preso e falou disso com a família.
Um policial de apelido “Marechal” disse que ele estava preso num quartel da guarnição de São Paulo. Daí em diante, nada. A mãe de Fernando, Elzita Santa Cruz, morta há pouco, foi uma leoa e bateu em todas as portas. Os senadores Franco Montoro e Amaral Peixoto perguntaram pelo paradeiro de Fernando da tribuna da Casa. Elzita escreveu ao comandante da guarnição do Rio e ao marechal Juarez Távora. O velho tenente de 1930 enviou a carta ao general Golbery, chefe do Gabinete Civil do presidente Ernesto Geisel, que assumira em março. Meses depois, ela interpelou o próprio Golbery. Na busca por Fernando, teve a ajuda do marechal Cordeiro de Farias, comandante da Artilharia da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Itália. Nada. O ministro da Justiça, Armando Falcão, informava que estava foragido, vivendo “na clandestinidade”. Mentira.
Nenhuma família de militante executado fingiu que ele desapareceu.
Bolsonaro pode ter sua realidade paralela, mas o general Rocha Paiva nunca foi “melancia”, nem Fernando Santa Cruz foi executado pela APML. Por falar nisso, Rubens Paiva não foi resgatado por comparsas. Quem diz isso são oficiais que estavam no quartel da Polícia do Exército no Rio em 1971.
2019-07-31 05:00:00Z
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/eliogaspari/2019/07/a-realidade-paralela-de-bolsonaro.shtml
No comments:
Post a Comment